Urbanístico

Novidades no regramento do CEDI do Município de São Paulo

Novidades no regramento do CEDI do Município de São Paulo (e algumas redundâncias)

Por Marco Antonio Ziebarth, João Vítor Carvalho e Fernando Escudero

 

A redundância não é algo completamente estranho ao ordenamento jurídico. A Constituição Federal, por exemplo, “preocupou-se” em deixar claro em duas passagens que os “imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião” (art. 183, § 3º; art. 191, parágrafo único). Ideias repetitivas podem ser encontradas em outros diplomas normativos, assim como também é comum verificar uma nova legislação reiterar texto normativo já existente.

Essa redundância, embora desnecessária do ponto de vista estritamente jurídico, se não por deslize apreensivo do formulador da norma ou pelo intuito de organizar o regramento, pode ter como causa um sentimento de necessidade de frisar uma regra, especialmente se esta não vem sendo cumprida ou se verifica o risco de não o ser.

Sob essa perspectiva, não é exagero supor que o recente Decreto Municipal n.º  63.421/24, ao reiterar os termos da Portaria Intersecretarial  SSF/SEL/SMPS n.º 06/2016, o fez como resposta à contínua inobservância ou falta de entendimento por parte da própria Administração Pública das regras relativas à atualização do CEDI – Cadastro de Edificações.

Já escrevemos anteriormente a respeito da polêmica envolvendo esse cadastro quando abordamos o julgamento do Agravo de Instrumento n.º 2167446-91.2023.8.26.0000, no qual foi travada discussão acerca da legalidade ou não de procedimento adotado pela Administração Pública Municipal que levou ao cadastro da irregularidade no CEDI de determinada edificação no Município de São Paulo.

À luz da legislação urbanística, que estabelece a forma e procedimento de atualização do CEDI – notadamente da citada Portaria Intersecretarial  SSF/SEL/SMPS n.º 06/2016 –, a Câmara Julgadora reconheceu a ilegalidade no tratamento dos dados pelo órgão responsável pela atualização do CEDI, já que houve superposição automática de dados vindos da Secretaria Municipal da Fazenda. Para além disso, reconheceu violação ao princípio do contraditório e da ampla defesa, na medida em que a atualização procedida, na prática, tornou sem efeitos o Certificado de Conclusão (Habite-se) expedido sem que, para tanto, a parte interessada fosse previamente intimada acerca da remoção dessa licença administrativa.

A Portaria em questão teve por principal objetivo traçar as diferenças entre a área construída bruta (computada para fins tributários e oriundos do Cadastro Imobiliário Fiscal, gerido pela Secretaria da Fazenda) e área edificada (computada para fins de licenciamento e a que efetivamente deve ser levada em consideração no CEDI). A partir disso, delimita o procedimento a ser seguido nos casos em que fiscalizações tributárias possam gerar atualização do CEDI pela Secretaria de Licenciamento. A Portaria é categórica – e chega até a ser repetitiva – ao estabelecer a distinção entre área construída bruta e edificável e a forma como devem ser tratados os dados por ambas as secretarias, justamente para que não ocorram atualizações cadastrais automáticas e sem análise criteriosa em prejuízo ao particular.

Nesse contexto de redundância é que,  em 21 de maio de 2024, foi publicado o citado Decreto Municipal n.º  63.421/24, que, além de regulamentar a Lei Municipal n.º 8.382/76, que criou o CEDI, reiterou os termos da Portaria n.º 06/2016. Mais um caso no ordenamento jurídico em que, diante do desrespeito à regra posta, utilizou-se da repetição para assegurar o correto cumprimento da norma, pois, em que pese a clareza da Portaria, desde sua edição foram diversas as situações em que houve a atualização do CEDI, pela Secretaria de Licenciamento, fora dos seus limites legais.

Mas para além de reiterar a distinção entre as áreas tributáveis e edilícias, o Decreto trouxe Capítulo específico sobre a “Operacionalização e Atualização do CEDI”, que conta com relevantes dispositivos que enfatizam o procedimento e asseguram os princípios do contraditório e da ampla defesa.  São dois dispositivos que esmiuçam e praticamente consolidam o procedimento para atualização no CEDI, de modo a tornar ainda mais claro o objetivo de não permitir a automática irregularidade através da sobreposição de informações oriundas da Secretaria da Fazenda.

Um ponto que chama a atenção, trazido pelo art. 17 do Decreto, diz respeito às hipóteses em que o CEDI, nos casos de modificação do Cadastro Imobiliário Fiscal, poderá ser atualizado à irregularidade. Em todas as hipóteses tratadas – e aqui reside ponto inovador do Decreto – deve haver documento da Administração Pública Municipal, devidamente motivado, que expressamente ateste que eventual divergência com relação ao Habite-se se deve a elemento considerado pela legislação urbanística, e não somente tributário.

O Decreto vai além. A preocupação com o devido procedimento é tal que, na inexistência de documento expedido pela Administração Pública, deverá ser realizada nova vistoria no imóvel até que se tenha a clareza a respeito da natureza jurídica da área adicional que levou à modificação do CIF. E, nesse caso, mesmo que em vistoria seja constatado elemento edilício em desacordo com Certificado de Conclusão emitido, deverá ser instaurado novo procedimento administrativo que vise à cassação da licença, com o respeito ao prévio contraditório. Somente após a conclusão desse procedimento, portanto, poderá o CEDI tornar-se irregular, se o caso for, com a cassação do Habite-se ou documento equivalente.

Na verdade, regra como essa já era prevista pelo vigente Código de Obras e Edificações  (Lei Municipal n.º 16.642/17), que, em seu art. 68, condiciona a anulação ou cassação do Habite-se à prévia manifestação do interessado. Mas erros na operacionalização do CEDI foram graves a ponto de ignorar tal regra, tanto que o seu equivocado manuseio levou, na prática, à cassação de licenças expedidas, sem oferecer contraditório.

O Decreto Municipal n.º 63.421/24 poderia ter sido mais claro em alguns pontos, como, por exemplo, dizer qual o órgão seria competente pela emissão do documento “que aponte de forma expressa a irregularidade em relação à legislação edilícia” (art. 17) ou, ainda, a quem compete a fiscalização (art. 17, inciso II) na hipótese de a modificação no CIF não vir acompanhada do mencionado documento.

Em todo caso, por mais redundante que seja, frente a um cenário de extrema insegurança, dentro do qual diversas edificações do Município tiveram, na prática, suas licenças cassadas, o Decreto veio em momento bastante oportuno, já que consolida as regras procedimentais e privilegia o prévio contraditório e ampla defesa. Mesmo diante a vigência da Portaria Interscretarial n.º 06/16, portanto, a repetição mais uma vez foi necessária.

 

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